Há mais de duas décadas Elza Soares já denunciava as desigualdades enfrentadas pela população negra no Brasil. Em A Carne, uma de suas canções mais marcantes, a artista imortalizou a frase “a carne mais barata do mercado é a carne negra”, onde evidencia a precarização da mão de obra e a disparidade social e salarial que atravessam gerações.
Dados de 2023 levantados pela Abrasel, a partir da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) do IBGE, mostram que a letra, infelizmente continua atual: hoje, cerca de 65% das pessoas que trabalham informalmente no setor de Alimentação Fora do Lar são autodeclaradas pretas ou pardas. Entre as vagas formais, dados de 2021 (da RAIS) indicam que cerca de 38% são ocupadas por pessoas que se autodeclaram negras ou pardas.
Em um setor tão amplo, essas desigualdades históricas são visíveis. São cerca de 1,5 milhão de empresas em operação no setor de Alimentação Fora do Lar atualmente. Embora reconhecido por sua contribuição significativa à economia e por uma diversidade maior em comparação a outras áreas, o segmento ainda reflete os desafios estruturais da sociedade brasileira, particularmente na ocupação de cargos de liderança por pessoas pretas e pardas. Essa lacuna reforça a necessidade de questionar os espaços destinados a essas pessoas no mercado de trabalho.
Os dados e relatos mostram que a disparidade em cargos de liderança permanece, mas também apontam para um movimento crescente em prol da representatividade e da equidade racial. Mais que isso, é uma oportunidade de transformar o setor em um exemplo de mudança estrutural e valorização do talento humano.
Negros em espaço de poder
Para melhorar esse quadro, a ausência de pessoas negras ou pardas precisa ser observada em todos os cenários. É isso o que ponta a autora Djamila Ribeiro, em seu livro Pequeno Manual Antirracista.
“A ausência ou a baixa incidência de pessoas negras em espaços de poder não costuma causar incômodo, ou surpresas em pessoas brancas. Para desnaturalizar isso, todos devem questionar a ausência de pessoas negras em posições de gerência, autores negros em antologias, pensadores negros nas bibliografias de cursos universitários, protagonistas no audiovisual”.
Inclusive, o próprio o setor de Alimentação Fora do Lar é citado como um exemplo pela autora. “Pessoas brancas, por exemplo, devem questionar por que em um restaurante, muitas vezes, as únicas pessoas negras presentes estão servindo mesas”, diz.
Como evoluir?
A analista de Recursos Humanos, Caroline Teixeira, acredita que o cenário atual para diversidade racial em cargos de gerência, atendimento e administração em bares e restaurantes tem avançado, mas ainda enfrenta muitos desafios.
Para ela, o aumento da diversidade é reflexo das pressões externas do público, da mídia e das novas políticas de governança, o que acaba influenciando os donos destes estabelecimentos a buscarem por mais diversidade, inclusive em espaços de liderança. Isso significa que “para os restaurantes se manterem competitivos, é preciso abraçar a diversidade como parte do seu posicionamento”.
Desenvolvendo talentos
Para que se construa mais estabelecimentos no setor com lideranças negras, é necessário que a mentalidade focada na diversidade venha das pontas mais altas da gestão. Caroline destaca que este é um processo cultural, no qual há a necessidade de uma prática continua.
“Para promover mais inclusão e equidade nos quadros de liderança, bares e restaurantes precisam começar analisando suas políticas internas. Antes mesmo de pensar em divulgar vagas específicas para pessoas negras, é essencial garantir que a empresa possua um ambiente que apoie de forma genuína a diversidade”, orienta.
A criação de uma cultura mais diversa é um fator importante para a criação de uma identificação com o público-alvo dos bares e restaurantes que, muitas vezes, possui perfis diversos.
“Promover diversidade não é só uma questão social, mas também estratégica. Negócios que investem nisso criam um ambiente mais acolhedor, se conectam melhor com seus clientes e fortalecem a imagem da marca. A inclusão precisa ser um compromisso diário, e não apenas uma resposta à pressão externa”, destaca.
Liderança e diversidade racial
Apesar de ser um segmento composto, em sua maioria, pela população negra, ainda existe o desafio de legitimar esses profissionais como líderes. A confeiteira Ariana Bentos, proprietária da Bentos Confeitaria, localizada na cidade de Lavras, em Minas Gerais, expressa que ainda é difícil. “Temos pouquíssimas pessoas negras em cargos de liderança. Para variar, o nosso esforço para ter algo ou algum cargo alto é quase dobrado”.
Para a empreendedora, a luta permeia muitos caminhos, da construção da imagem de líder no próprio estabelecimento até a relação com os clientes. Apesar disso, ariana avalia que o cenário tem mudado, e a ocupação de pessoas negras em espaços de liderança tem aumentado. Entretanto, ainda enfrenta barreiras.
“Estamos acostumados a nos ver somente servindo, sem ocupar posições de lideranças, mas sim sendo garçons ou faxineiras. No entanto, isso está mudando aos poucos, a passos bem lentos, mas está. Quando vejo um preto bem-sucedido e bem colocado, sinto um orgulho danado, a gente vê e sente a luta que nós passamos todos os dias”.
Ela ainda diz: “Temos muita luta pela frente e o que eu falo sempre para qualquer pessoa preta que começa a trabalhar aqui é para investir em estudo, ainda que não goste. Busco motivá-los a aprender, empreender e a se movimentar, porque nossa luta é dobrada”, finaliza.
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TATIANE RAQUEL FERREIRA RIBEIRO
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